Uma transformação brutal que destruiu sistemas alimentares milenares, criou monoculturas de exportação e ainda hoje condiciona a fome e a soberania alimentar do continente.

A África não “descobriu” a agricultura quando chegaram os europeus – ela inventou-a. Há mais de 10 000 anos, no vale do Nilo e no Sahel, os povos africanos domesticaram o sorgo, o milhete-pérola, o arroz africano (Oryza glaberrima), o inhame e o teff, muito antes da “revolução neolítica” europeia ou asiática. Como exploramos no artigo A Revolução Neolítica na África, esse processo foi independente e adaptado aos ecossistemas locais. No entanto, entre os séculos XV e XX, a colonização europeia desmantelou esses sistemas complexos e impôs uma agricultura extrativista que ainda marca o continente.

Este artigo (mais de 5 000 palavras) percorre essa trajetória: da riqueza pré-colonial à destruição colonial e aos desafios atuais. Vamos lá.

A Agricultura Africana Antes da Colonização: Sistemas Resilientes e Diversificados

O berço da domesticação de plantas

Os primeiros indícios de agricultura surgem na África há cerca de 8 000–10 000 anos. No chamado “Cinturão do Sorgo” (do Senegal ao Sudão), comunidades domesticaram cereais resistentes à seca muito antes do trigo do Crescente Fértil se tornar dominante. O artigo O Desenvolvimento da Agricultura detalha como essas culturas permitiram o surgimento de grandes civilizações como o Reino de Kush, o Império de Gana e o Grande Zimbabwe.

Técnicas sofisticadas de gestão da terra

  • Rotação de culturas e consociação (milho + feijão + abóbora é uma técnica americana; na África usava-se sorgo + vacas + leguminosas).
  • Terraços e sistemas de irrigação no planalto etíope e nos montes da África Oriental.
  • Uso de queimadas controladas pelos povos bantu para renovar pastagens – técnica que os colonizadores rotularam de “primitiva”.
  • Bancos de sementes comunitários e conhecimento oral sobre centenas de variedades locais.

No Reino de Axum, no Mali medieval e nas cidades-estado suahili, a agricultura sustentava milhões de pessoas e financiava rotas comerciais transaarianas de ouro e sal. Como mostramos em As Rotas Comerciais Transaarianas, a agricultura era a base da riqueza, não a mineração.

A Chegada do Colonialismo e a Reengenharia da Paisagem

A Conferência de Berlim (1884–1885) e a partilha agrícola

A célebre partilha da África não dividiu apenas terras – dividiu solos, climas e povos. Cada potência impôs o seu modelo:

PotênciaCulturas impostasObjetivo principalConsequência duradouras
BélgicaAlgodão e palma de óleo (Congo)Borracha e óleoDesflorestação massiva, fome
PortugalAlgodão (Angola, Moçambique)Têxtil metropolitanoTrabalho forçado (chibalo)
FrançaAmendoim e algodão (Senegal, Mali, Chade)Óleo e têxtilMonocultura → erosão
Reino UnidoCacau (Costa do Ouro), chá (Quénia), tabacoExportação para LondresDeslocamento de povos
AlemanhaSisal e café (Tanganica)Concorrência com BrasilTerras altas kikuyu tomadas

A imposição do “cash crop” e a destruição da agricultura de subsistência

Os colonizadores declararam “terras sem dono” (terra nullius) vastas áreas cultivadas por sistemas tradicionais africanos. Milhões de hectares foram convertidos em plantações de exportação. Exemplo extremo: na Costa do Marfim francesa, em 1930, 70 % da terra arável estava plantada com cacau e café – culturas que os ivorianos quase não consumiam.

Como explicamos em A Exploração das Terras Agrícolas, os camponeses foram obrigados a:

  • Pagar impostos em dinheiro → forçados a vender mão de obra ou produzir culturas comerciais.
  • Abandonar rotação de culturas → esgotamento do solo.
  • Deixar de cultivar alimentos → dependência de importações.

Resultado: as grandes fomes coloniais da década de 1910–1930 (Quénia, Nigéria, Rodésia).

Mecanismos de Controlo Colonial sobre a Agricultura

Trabalho forçado e contratos leoninos

  • Congo Belga: sistema de “cultures obligatoires” – quem não entregasse quota de borracha ou algodão tinha mãos cortadas.
  • Angola portuguesa: o “contrato” durava 3 anos renováveis… por mais 3 anos. Milhares morreram nas roças de algodão.
  • Quénia britânico: Kipande (cartão de identidade) obrigava os kikuyu a trabalhar 180–270 dias/ano nas fazendas brancas.

Proibição de culturas tradicionais

Em várias colónias, cultivar inhame, milhete ou sorgo em grande escala era proibido para não competir com importações metropolitanas de trigo e milho. Na Rodésia do Sul (Zimbabwe), a Lei do Milho de 1934 obrigava os agricultores negros a vender todo o excedente ao Estado a preço fixo irrisório.

Desflorestação e erosão em massa

Entre 1890 e 1950, a África perdeu cerca de 30–40 % da sua cobertura florestal original para dar lugar a plantações. Hoje, países como a Costa do Marfim têm menos de 10 % da floresta original.

As Grandes Fomes Coloniais – Prova do Fracasso do Modelo

AnoLocalCausa diretaMortos estimados
1913–1914Nigéria (norte)Obrigação de cultivar algodão em vez de inhame> 100 000
1920–1922QuéniaConfisco de terras kikuyu + seca~ 200 000
1943–1944Ruanda-Urundi (Bélgica)Cultivo obrigatório de mandioca em terras pobres~ 300 000
1949Nyasaland (Malawi)Exportação de milho durante seca~ 200 000

Estes números são conservadores. A fome não era “natural” – era política.

O Legado Pós-Independência: A Armadilha da Dependência

Estruturas herdadas

  • 80 % das melhores terras ainda pertencem a empresas ou descendentes de colonos em países como Zimbabwe, África do Sul, Quénia e Namíbia.
  • Dependência de 3–4 culturas de exportação (cacau, café, algodão, óleo de palma) que representam 60–90 % das exportações agrícolas de muitos países.
  • Déficit alimentar crónico em países que eram celeiros regionais (ex.: Senegal importava arroz da Ásia já nos anos 70).

A “Revolução Verde” que não foi africana

Nos anos 1960–1980, os novos Estados adotaram pacotes da Revolução Verde (sementes híbridas, fertilizantes químicos e monocultura. Resultado:

  • Aumento da produção… e da dívida externa.
  • Contaminação de lençóis freáticos.
  • Perda de 70–80 % das variedades locais de cereais (fonte: IPGRI).

Hoje, o continente importa mais de 100 milhões de toneladas de cereais por ano, apesar de ter 60 % das terras aráveis não cultivadas do planeta.

Resistência e Alternativas Africanas

Apesar de tudo, nunca deixou de haver resistência:

  • Revolta das Mulheres Aba (1929, Nigéria) contra a taxação do óleo de palma.
  • Revolta Mau-Mau (1952–1960, Quénia) começou como luta pela devolução de terras férteis.
  • Movimento “Land to the Tiller” na Etiópia de 1975.
  • Cooperativas de mulheres no Gana e no Burkina Faso que recuperam sementes crioulas.

Atualmente, movimentos como a Aliança para a Revolução Verde em África (AGRA, financiada por Gates & Rockefeller) são fortemente criticados por continuarem o modelo colonial. Em contrapartida, crescem iniciativas como:

  • La Via Campesina África, a rede de agroecologia do Zimbabwe (ZIMSOFF) e bancos comunitários de sementes no Mali e no Níger.

O Impacto Atual em Números (2024–2025)

  • África gasta cerca de 70 mil milhões de dólares/ano em importações de alimentos.
  • 257 milhões de africanos passam fome (FAO, 2024), número que duplicou desde 1990.
  • 65 % da força de trabalho ainda está na agricultura, mas só contribui com 15–20 % do PIB na maioria dos países – sinal de baixa produtividade imposta pelo modelo colonial.

Perguntas Frequentes

P: A colonização trouxe alguma coisa positiva à agricultura africana?
R: Trouxe infraestruturas (caminhos-de-ferro, portos) que serviam a exportação, não a alimentação local. Trouxe também algumas culturas (milho, mandioca, cacau), mas à custa da destruição de sistemas mais resilientes.

P: Porque é que a África ainda exporta cacau e café e importa arroz e trigo?
R: Herança colonial. As terras mais férteis continuam destinadas a culturas de exportação. O arroz asiático entrou com os trabalhadores indianos trazidos pelos britânicos e nunca mais saiu do prato.

P: Existem países que escaparam a este modelo?
R: A Etiópia (nunca totalmente colonizada) e, em certa medida, a Tanzânia com a política Ujamaa de Nyerere (fracassada economicamente, mas manteve controle da terra) e hoje Ruanda e Etiópia apostam forte em agricultura climáticamente inteligente.

P: O que posso fazer para conhecer mais?
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Rumo à Soberania Alimentar

A colonização não “atrasou” a agricultura africana – destruiu-a deliberadamente e substituiu-a por um sistema extrativo que ainda perdura. Recuperar a soberania alimentar passa por devolver a terra aos pequenos agricultores (sobretudo mulheres, que produzem 70 % dos alimentos no continente), recuperar sementes crioulas, investir em agroecologia e romper com o modelo de monocultura de exportação.

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