O Império Etíope (também chamado de Império de Axum e, mais tarde, Império da Abissínia) é um dos poucos Estados africanos que adotou o cristianismo como religião oficial ainda no século IV d.C., tornando-se o segundo país do mundo (depois da Arménia) a fazê-lo. Enquanto o resto da África subsaariana ainda vivia sob sistemas de crenças tradicionais ou começava a receber o Islão a partir do século VII, a Etiópia construía uma identidade cristã única, profundamente africana e independente de Roma ou Constantinopla.

Esta história não é apenas religiosa: é política, cultural, artística e militar. O cristianismo moldou o conceito de monarquia divina etíope, justificou guerras, inspirou obras-primas de arte rupestre e manuscritos iluminados, e permitiu que o país resistisse às investidas otomanas, árabes e, mais tarde, europeias. Vamos mergulhar fundo nesta narrativa fascinante.

Os Primórdios: Frumêncio, Ezana e a Conversão Oficial do Reino de Axum

Tudo começou no porto de Adúlis, no Mar Vermelho. Por volta do ano 316 d.C., um jovem sírio chamado Frumêncio (Abba Salama) e o seu amigo Edésio naufragaram na costa axumita. Sobreviveram, foram acolhidos na corte do rei e acabaram por converter a família real. Quando Ezana subiu ao trono (c. 330 d.C.), tornou o cristianismo religião do Estado. As moedas de Ezana deixaram de ostentar o crescente pagão e passaram a exibir a cruz cristã – um sinal claro de ruptura com o passado.

“Ezana, filho de Ella-Amida, rei dos axumitas (…) pela graça do Senhor do Céu que me deu força.”
Inscrição em pedra de Ezana (DAE 11)

Este acto colocou Axum no mapa do mundo cristandade oriental. Para saber mais sobre o esplendor comercial e marítimo que permitiu este contacto, veja As conquistas marítimas do Reino de Axum e O reino de Axum: o elo perdido.

A Igreja Etíope Tewahedo: Nem Romana, Nem Bizantina – Uma Via Africana

Ao contrário do que aconteceu no Egipto ou na Núbia, a Igreja Etíope nunca aceitou totalmente o Concílio de Calcedónia (451). Adoptou a cristologia miafisita (“uma só natureza encarnada do Verbo”), tal como as igrejas copta, síria e arménia. Nasceu assim a Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, cujo nome em ge’ez significa “unificação”.

Características únicas:

  • Uso exclusivo da língua litúrgica ge’ez (ainda hoje mantida)
  • Observância do sábado judaico além do domingo
  • Circuncisão ao 8.º dia
  • Arca da Aliança guardada em Aksum (segundo a tradição, trazida por Menelik I, filho do rei Salomão e da rainha de Sabá)
  • Monaquismo extremamente austero nas montanhas de Tigré e Lasta

Para entender como esta identidade religiosa se entrelaça com lendas bíblicas, leia Religião e cultura dos reinos da Etiópia.

A Era Zagwe e as Igrejas Escavadas de Lalibela (séc. XII–XIII)

Quando a dinastia axumita entrou em declínio, surgiu a dinastia Zagwe (c. 1137–1270), de origem agaw. O rei Lalibela quis criar uma “Nova Jerusalém” no planalto etíope. Mandou escavar 11 igrejas monolíticas directamente na rocha vulcânica vermelha – obras que a UNESCO considera “a oitava maravilha do mundo”.

Estas igrejas continuam vivas, cheias de peregrinos todos os dias. A cruz de Lalibela tornou-se um dos símbolos mais poderosos da arte cristã africana. Explore mais sobre Os grandes construtores: arquitetura africana antiga.

A Dinastia Salomónica (1270–1974) e o Kebra Nagast

Em 1270, Yekuno Amlak derrubou o último rei Zagwe e restaurou a “linhagem salomónica”. O livro sagrado Kebra Nagast (“Glória dos Reis”), redigido no século XIV, legitima esta dinastia afirmando que os imperadores etíopes descendem directamente do rei Salomão e da rainha de Sabá. A partir daí, cada negusa nagast (rei dos reis) era considerado “Leão de Judá” e “eleito de Deus”.

Esta ideologia serviu para:

  • Justificar guerras de expansão contra reinos muçulmanos vizinhos
  • Manter a unidade interna apesar das rivalidades regionais
  • Resistir às tentativas de conversão católica portuguesa no século XVI

O Século das Missões Católicas e a Resistência Etíope (1550–1630)

Quando os portugueses chegaram ao Mar Vermelho para combater os otomanos, encontraram na Etiópia um aliado cristão. O imperador Lebna Dengel pediu ajuda contra o sultanato de Adal (liderado por Ahmad Gragn). Chegaram 400 mosqueteiros comandados por Cristóvão da Gama (filho de Vasco da Gama). Apesar da vitória militar, o imperador Susenyos (1607–1632) converteu-se ao catolicismo e tentou impor a fé romana. Resultado? Revolta geral.

O seu filho Fasilides expulsou os jesuítas em 1633, destruiu igrejas latinas e fechou o país ao Ocidente durante quase dois séculos (período conhecido como Zemene Mesafint – “Era dos Juízes”). Este episódio mostra como o orgulho etíope na sua própria tradição cristã.

Gondar: A “Camelot Africana” e o Apogeu Cristão (1636–1769)

Fasilides fundou a cidade de Gondar e construiu castelos de pedra que ainda hoje impressionam. A corte gondarina produziu manuscritos iluminados de beleza incomparável, hinos em ge’ez e pinturas murais que misturam influências bíblicas com traços africanos inconfundíveis.

A Resistência Cristã Contra o Colonialismo Europeu

Em 1896, na batalha de Adwa, Menelik II derrotou o exército italiano. A vitória foi atribuída à intercessão de São Jorge (muito venerado na Etiópia). O imperador distribuiu milhares de imagens do santo aos soldados. A Etiópia tornou-se símbolo mundial de resistência negra e cristã contra o colonialismo europeu.

Mais tarde, Haile Selassie (1930–1974) usou a mesma identidade cristã ortodoxa para apelar à Liga das Nações contra a invasão de Mussolini em 1935. A Igreja Etíope foi fundamental na preservação da independência.

Arte, Literatura e Música: A Herança Cristã Etíope Hoje

  • Manuscritos iluminados – mais de 200 mil conservados em mosteiros
  • Cruzes processionais em prata e bronze – obras-primas únicas
  • Cantos litúrgicos em modo zema com tambores kebero e sistros
  • Dança escatológica (dos debteras) durante a festa de Timkat (Epifania)

Se gosta de arte sacra africana, veja também Arte rupestre na África das civilizações e Arte africana: expressões culturais.

Perguntas Frequentes

1. A Etiópia segue o calendário juliano?
Sim. O calendário etíope tem 13 meses e está 7/8 anos atrasado em relação ao gregoriano. O Natal (Genna) celebra-se a 7 de Janeiro.

2. A Arca da Aliança está mesmo em Aksum?
Segundo a tradição da Igreja Tewahedo, sim. Fica na capela de Santa Maria de Sião e só o guardião vitalício a pode ver.

3. Por que a Igreja Etíope é considerada “judaizante”?
Mantém práticas do Antigo Testamento: circuncisão, separação de alimentos, sábado sagrado, etc. Alguns académicos falam de “cristianismo africano com raízes hebraicas”.

4. Qual foi o papel das mulheres na Igreja Etíope?
Embora o clero seja masculino, rainhas como Eleni (séc. XV) e Mentewab (séc. XVIII) construíram igrejas e influenciaram a política religiosa. Veja Mulheres poderosas da Antiguidade e Mulheres poderosas da história africana.

5. O cristianismo etíope influenciou o movimento rastafári?
Sim. Haile Selassie era considerado a encarnação de Jah pelos rastas jamaicanos. A bandeira etíope (verde-amarelo-vermelho) tornou-se símbolo pan-africano.

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