O rio Nilo não deu apenas vida à terra seca; deu voz aos homens. Enquanto o resto do mundo ainda desenhava nas paredes das cavernas, os egípcios já registravam impostos, hinos aos deuses, cartas de amor e até reclamações de trabalhadores em greves – tudo isso há mais de 5.000 anos. A escrita não foi um luxo no Egito Antigo: foi o próprio alicerce do Estado, da religião e da imortalidade pessoal.
As Origens: Do desenho à palavra divina
Tudo começou por volta de 3100 a.C., na transição entre o período pré-dinástico e o início do Reino Antigo. Os primeiros sinais aparecem em etiquetas de marfim encontradas em Abidos – pequenos retângulos que identificavam produtos do tesouro real. Esses símbolos, chamados de “proto-hieróglifos”, já misturavam imagens figurativas com sinais fonéticos.
“A escrita é o pincel do pensamento e a voz da ausência.”
– Inscrição em tumba tebana do Reino Médio
A união política do Alto e Baixo Egito, liderada pelo lendário Narmer (ou Menés), exigiu administração centralizada. Nasceu então o sistema que chamamos de hieróglifos (do grego “escrita sagrada gravada”). O nome é grego, mas os próprios egípcios chamavam-na de medu netjer – “palavras dos deuses”. E faziam questão de dizer que o deus Thot, com cabeça de íbis, havia sido o inventor.
Se quiser entender como a criatividade humana surgiu na África muito antes, veja o artigo África: O Berço da Criatividade Humana.
Os quatro sistemas de escrita egípcia: Muito mais que “desenhos bonitinhos”
Contrariamente ao que muita gente pensa, os egípcios usavam quatro escritas diferentes, cada uma com função própria:
| Sistema | Características | Uso principal | Exemplo de suporte |
|---|---|---|---|
| Hieróglifos | Monumental, detalhado, colorido | Templo, tumbas, estelas | Papiro de Ani (Livro dos Mortos) |
| Hierático | Cursivo, simplificado, escrito com pincel | Administração, literatura, cartas | Papiro administrativo |
| Demótico | Ainda mais cursivo, quase abstrato | Contratos, contabilidade do dia a dia | Papiro de leis do Período Tardio |
| Copta | Alfabeto grego + 7 letras demóticas | Textos cristãos a partir do séc. II d.C. | Bíblia copta |
O hierático já existia no Reino Antigo. O demótico surgiu por volta de 650 a.C. e foi a escrita do povo até a chegada dos gregos. Quem quiser ver como a Evolução da Escrita Hieroglífica e a Importância mudou o mundo, clique aqui.
Materiais e ferramentas: Escrever era um ofício sagrado
- Suporte: Papiro (inventado pelos egípcios), ostraca (cacos de cerâmica ou pedra calcária), tábuas de madeira enceradas, paredes de templos.
- Tinta: Preta (fuligem + goma) e vermelha (ocre vermelho) – o vermelho marcava inícios de parágrafos ou nomes reais.
- Instrumento: Cálamo (junco mastigado na ponta) ou pincel de fibras vegetais.
Os escribas eram a elite intelectual. Formavam-se nas “Casas da Vida” (per-ankh) anexas aos templos. Um bom escriba ganhava mais que um artesão qualificado e estava isento de trabalho braçal e impostos. Não é à toa que o dito popular: “Sê escriba, para que teus membros estejam suaves e tua língua seja doce.”
Literatura: Do épico ao cotidiano
1. Textos religiosos e funerários
Os famosos Livros dos Mortos são na verdade uma coleção de feitiços (mais de 200 capítulos) para garantir a vida após a morte. Mas havia também:
- Textos das Pirâmides (Reino Antigo) → gravados nas câmaras de pirâmides
- Textos dos Sarcófagos (Reino Médio)
- Livro do Amduat, Livro das Portas, Livro das Cavernas (Reino Novo)
2. Literatura sapiencial (“Ensinamentos”)
Obras de conselhos de um pai ao filho ou de um rei aos sucessores:
- Ensinamentos de Ptahhotep (visir da V dinastia – o texto moral mais antigo conhecido)
- Ensinamentos de Amenemope (influenciou diretamente o Livro dos Provérbios da Bíblia)
- Ensinamentos para o rei Merikare
3. Narrativas e contos
- Conto dos Dois Irmãos (história de ciúme, traição e ressurreição)
- Conto do Náufrago (aventura fantástica em ilha misteriosa)
- História de Sinuhe – considerada por muitos a obra-prima da literatura egípcia, um verdadeiro “romance” de exílio e retorno.
4. Poesia lírica e hinos
Os poemas de amor do Reino Novo são de uma sensualidade impressionante:
“Sete dias até hoje não te vi,
a doença invadiu-me…
Meu coração não está no meu corpo
quando lembro do teu amor.”
5. Ciência e medicina
- Papiro cirúrgico Edwin Smith (1650 a.C.) – primeiro tratado de traumatologia da história
- Papiro Ebers – mais de 800 receitas médicas
- Papiro matemático Rhind – problemas de cálculo com frações unitárias
A escrita como ferramenta de poder
O faraó era o único que podia “falar” diretamente com os deuses através da escrita. Quando Ramsés II assinava tratados (como o de Kadesh, o mais antigo tratado de paz conhecido), mandava gravá-lo em hieróglifos nas paredes de Karnak e enviava uma cópia em cuneiforme de prata aos hititas – diplomacia multilíngue 1.300 anos antes de Cristo.
Durante o Reino de Kush, os reis núbios adotaram e adaptaram a escrita egípcia. Veja como em O Reino de Kush e sua Relação com o Egito.
Mulheres escribas e literatas
Sim, existiram! Seshat era a deusa da escrita, da medida e da sabedoria. Várias mulheres da elite aprenderam a ler e escrever:
- A princesa Nebet, escriba do tesouro divino no Reino Antigo
- A rainha Teti-Sheri, que ditava cartas administrativas
- A princesa-escriba Nesi-Khonsu, do Reino Novo
Mais sobre o papel delas em As Mulheres na Sociedade Africana e As Mulheres Poderosas da Antiguidade.
O declínio… e a ressurreição
Com a conquista grega (332 a.C.), o grego tornou-se a língua da administração. O demótico sobreviveu até o século V d.C. A última inscrição hieroglífica conhecida data de 394 d.C. (templo de Ísis em File). A última em demótico é de 452 d.C.
Só em 1822, com Jean-François Champollion e a Pedra de Roseta, o mundo voltou a “ouvir” a voz do Egito Antigo.
Perguntas Frequentes
P: Os egípcios tinham romances?
R: Sim. A História de Sinuhe e o Conto do Náufrago são considerados os primeiros “romances” da humanidade.
P: Escreviam só sobre religião?
R: Não! Tinham contos humorísticos, sátiras políticas (como a Sátira dos Ofícios), cartas pessoais, diários de expedições e até reclamações trabalhistas (greve em Deir el-Medina).
P: Quantos hieróglifos existiam?
R: Cerca de 700 no Reino Médio, mais de 5.000 no período ptolomaico. Mas um escriba mediano usava cerca de 700-800 sinais.
P: A escrita egípcia influenciou outras africanas?
R: Sim. Os reinos de Kush, Axum e Meroé criaram suas próprias versões (meroítico ainda não totalmente decifrado). A escrita nsibidi da Nigéria e a escrita bamum dos Camarões têm raízes conceituais semelhantes.
P: Onde posso ver originais hoje?
R: Museu do Cairo, British Museum, Louvre, Metropolitan (NY), Museu Egípcio de Turim e o novo Grand Egyptian Museum (GEM) em Gizé.
A escrita que venceu a morte
Para os egípcios, pronunciar ou escrever um nome era garantir a existência eterna. Quando gravavam “ankh wedja seneb” (vida, prosperidade, saúde) ao lado de um nome, acreditavam estar dando vida. Hoje, cinco milênios depois, ainda lemos esses nomes. A escrita cumpriu sua promessa.
Se este mergulho na fascinante história da escrita egípcia te deixou com vontade de saber mais sobre outras civilizações africanas que também desenvolveram sistemas próprios, recomendo fortemente As Primeiras Civilizações da África – Origens e Civilizações Africanas Revolucionaram.
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Ankh wedja seneb – Vida, prosperidade e saúde para ti, leitor! ✍🏾🪶








