“Eu sou Bibiana Vaz, mulher livre, filha de um português e de uma africana, nego-me a ser escrava de quem quer que seja.”
– Palavras atribuídas a Bibiana Vaz, por volta de 1690, perante o governador de Cacheu.
Ela foi a mulher mais poderosa da Guiné-Bissau pré-colonial, uma comerciante luso-africana que controlava o comércio de escravizados, marfim e cera entre os rios Cacheu, Geba e Grande, que possuía navios próprios, armazéns, centenas de dependentes e que chegou a mandar prender o próprio governador português. A sua história é um dos capítulos mais fascinantes da presença portuguesa na África Ocidental e da emergência das elites nharas e lancados.
Quem foi Bibiana Vaz?
Bibiana Vaz nasceu provavelmente na década de 1630 em Cacheu, filha do capitão-mor português João Vaz e de uma mulher bijagó ou papei de origem nobre (possivelmente da linhagem real de Jeta ou Pecixe). Criada no seio da elite luso-africana, aprendeu português, crioulo e várias línguas locais, além de dominar as redes comerciais atlânticas desde muito jovem.
Casou-se com o poderoso comerciante Ambrósio Gomez (também ele filho de português e africana), formando um dos casais mais ricos da Costa da Guiné no século XVII. Após enviuvar, Bibiana não só herdou a fortuna como a multiplicou, tornando-se a principal nhara (senhora) de Cacheu e Farim.
O poder económico de Bibiana
- Possuía vários navios que faziam a rota Cacheu–São Tomé–Brasil–Lisboa
- Mantinha armazéns cheios de marfim, cera, arroz, gado e, sobretudo, escravizados
- Tinha mais de 300 “grumetes” (trabalhadores armados) ao seu serviço
- Era credora de quase todos os capitães-mores e governadores que passaram pela praça
- Chegou a emprestar dinheiro à Coroa portuguesa para pagar soldos aos soldados
A revolta contra o governador (1684-1687)
Em 1684, o novo governador de Cacheu, Capitão-mor José Gonçalves Pinheiro, tentou limitar o poder das grandes famílias luso-africanas. Bibiana Vaz, apoiada pelos filhos e aliados (incluindo o famoso “Rei de Ziguinchor”), organizou uma revolta aberta:
- Mandou prender o governador na sua própria casa
- Expulsou os funcionários da Coroa
- Governou Cacheu de facto durante quase três anos
- Só foi derrotada quando chegou uma frota enviada diretamente de Lisboa
Foi condenada à morte, mas a sentença foi comutada para degredo em Cabo Verde. Morreu pouco depois, provavelmente envenenada (suspeita-se que por ordem da própria da Coroa, para evitar que regressasse).
Contexto histórico: os luso-africanos e as nharas
Para entender Bibiana Vaz é preciso compreender o mundo em que viveu. Cacheu, fundada em 1588, foi durante dois séculos o principal entreposto português na África Ocidental. Ali formou-se uma sociedade crioula única onde:
- Filhos de portugueses com mulheres africanas livres (as célebres nharas) dominavam o comércio
- O crioulo guineense tornou-se língua franca
- A religião católica misturava-se com práticas tradicionais africanas
- O poder real não estava na fortaleza portuguesa, mas nas grandes casas comerciais luso-africanas
Se quiser aprofundar este período fascinante da história africana, recomendo vivamente estes artigos do site:
- Comércio transaariano e rotas do deserto
- Grandes rotas de comércio transaarianas
- As rotas comerciais da África medieval
- Relação da África e o mundo mediterrâneo
Legado de Bibiana Vaz
Mesmo após a sua queda, os descendentes de Bibiana continuaram a dominar o comércio do rio Cacheu durante todo o século XVIII. A sua família, os Vaz de Carvalho, foi uma das mais influentes da Guiné até à abolição do tráfico em 1836.
Hoje, Bibiana é lembrada na Guiné-Bissau como símbolo de resistência feminina e da força das mulheres luso-africanas. Em Cacheu existe uma rua com o seu nome e, em 2023, foi inaugurado um pequeno museu na Casa de Bibiana Vaz (edifício original ainda de pé).
Outras mulheres poderosas da história africana
Bibiana não foi caso único. Em toda a costa atlântica africana surgiram figuras femininas impressionantes:
- Rainha Nzinga de Ndongo e Matamba (Angola)
- Dona Beatriz Kimpa Vita (Reino do Congo)
- Senhora Tinubu de Abeokuta e Lagos (Nigéria)
- Rainha Amina de Zazzau (Hausaland)
Podes conhecer mais sobre elas aqui:
Mulheres poderosas da história africana
O poder das rainhas africanas – histórias
Poderosas rainhas e regentes africanas
Linha do tempo resumida
| Ano | Evento |
|---|---|
| c. 1630 | Nascimento de Bibiana em Cacheu |
| c. 1655 | Casamento com Ambrósio Gomez |
| 1670s | Tornou-se a maior comerciante da praça de Cacheu |
| 1684–1687 | Revolta contra o governador José Gonçalves Pinheiro |
| 1687 | Prisão e degredo para Cabo Verde |
| c. 1691 | Morte (provável envenenamento) |
| Século XVIII | Descendentes continuam a dominar o comércio do rio Cacheu |
Por que Bibiana Vaz ainda importa hoje?
Porque mostra que, mesmo no auge do tráfico atlântico de escravizados, houve africanas e afrodescendentes que não apenas vítimas, mas protagonistas ativas do comércio, da política e da guerra. A sua história desafia a narrativa simplista de “europeus poderosos vs africanos subjugados” e prova que a África colonial foi muito mais complexa e híbrida do que muitas vezes se ensina.
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Perguntas Frequentes
1. Bibiana Vaz era escrava?
Não. Era filha de portuguesa livre (ou de linhagem real africana) e de um oficial português. Pertencia à elite luso-africana livre.
2. Ela traficava escravizados?
Sim. Como quase todos os grandes comerciantes da época (europeus, luso-africanos e africanos), Bibiana participava no tráfico. Isso não anula o seu poder nem a sua excepcionalidade enquanto mulher negra/mulata numa sociedade patriarcal.
3. Porque é tão pouco conhecida fora da Guiné-Bissau?
Porque a historiografia portuguesa minimizou o papel das elites crioulas e porque, após a sua revolta, a Coroa tentou apagar-lhe a memória.
4. Existe algum livro sobre ela?
Sim. O melhor trabalho continua a ser o do historiador guineense Carlos Lopes, “Bibiana Vaz – A Nhara de Cacheu” (1988), infelizmente esgotado, mas disponível em algumas bibliotecas.
5. Posso visitar a casa dela?
Sim! Em Cacheu, Guiné-Bissau, a chamada “Casa de Bibiana Vaz” é um dos edifícios coloniais mais antigos preservados da África Ocidental.
Se quiseres saber mais sobre o comércio atlântico, as elites crioulas ou mulheres poderosas da história africana, continua a explorar o site. Temos centenas de artigos sobre o verdadeiro passado do continente que viu nascer a humanidade.
África não começa com a chegada dos europeus.
E Bibiana Vaz é a prova viva disso.
Fica bem e até ao próximo artigo! 🇬🇼🖤








