Os maiores navegadores da Antiguidade não foram gregos nem egípcios – foram os fenícios. E foi precisamente na costa africana que deixaram a sua marca mais profunda e duradoura.

Entre o século XII a.C. e a destruição de Cartago em 146 a.C., os fenícios (ou cananeus do litoral do atual Líbano) transformaram o Mediterrâneo numa autoestrada comercial e cultural. A sua maior colónia – Cartago – nasceu em solo africano (atual Tunísia) e acabou por se tornar uma das cidades mais poderosas do mundo antigo. Este artigo explora essa influência de forma profunda, mostrando como os fenícios não só comerciaram com a África, como literalmente a reconfigionaram cultural, religiosa, linguística e economicamente.

Quem Foram os Fenícios e Porquê Vieram à África?

Os fenícios eram um povo semita que habitava as cidades-estado de Tiro, Sidónia, Biblos e Arados. Mestres na construção naval (usavam o famoso cedro do Líbano), inventaram o alfabeto consonantal que está na origem do grego, do latim e, por consequência, do nosso próprio alfabeto.

A sua expansão para oeste começou por volta de 1200 a.C., motivada por:

  • Procura de metais (prata da Península Ibérica, estanho da Cornualha, cobre de Chipre)
  • Controle do comércio do púrpura de Tiro (o corante mais caro da Antiguidade)
  • Fuga à pressão assíria e babilónica no Levante

A África do Norte oferecia portos seguros, terras férteis e, sobretudo, a posição estratégica para dominar o comércio entre o Mediterrâneo ocidental e o interior africano.

Se quiseres saber mais sobre o contexto da expansão fenícia no Mediterrâneo, veja o artigo Cartago: a cidade que conquistou o mar e Comércio e cultura dos fenícios.

A Fundação de Cartago: Mito e Realidade

A tradição romana, preservada por Virgílio na Eneida, conta a história da princesa Elissa (Dido), que fugiu de Tiro após o assassinato do marido e fundou Qart-ḥadašt (“cidade nova”) em 814 a.C. Arqueologicamente, a data é impressionante: as escavações no morro de Byrsa confirmam ocupação fenícia a partir do final do século IX a.C.

Cartago tornou-se rapidamente a maior colónia fenícia e, depois a metrópole de um verdadeiro império talassocrático púnico-fenício na África do Norte, Sardenha, Sicília e sul da Península Ibérica.

Rotas Comerciais Fenício-Púnicas na África

Os fenícios não se limitaram à Tunísia. Criaram uma rede impressionante de entrepostos ao longo da costa africana:

  • Utica (a mais antiga colónia, anterior a Cartago)
  • Hadrumetum (atual Sousse)
  • Leptis Magna (Líbia)
  • Hippo Regius (Annaba, Argélia)
  • Mogador (Essaouira, Marrocos – o ponto mais ocidental conhecido até ao século V a.C.)

Mais importante ainda, exploraram o interior através das [caravanas do Saara](https://africanahistória.com/caravanas-do-saara-comercio-e-conexoes/ e das rotas transaarianas que já existiam antes da chegada do camelo domesticado.

O comércio incluía:

  • Ouro do Sudão ocidental e da região do rio Senegal (mencionado por Heródoto como “os povos silenciosos” que trocavam ouro por sal e vidro)
  • Marfim
  • Escravos
  • Púrpura
  • Cerâmica fenícia
  • Vinho e azeite do norte

Este comércio continuou durante o período púnico e foi absorvido pelos romanos após 146 a.C.

Para uma visão mais ampla dessas grandes rotas de comércio da Antiguidade.

Influência Cultural e Linguística

O Alfabeto

O alfabeto fenício chegou à África do Norte e foi adaptado pelos líbios (líbia) e pelos númidas. A escrita neo-púnica (derivado tardio do fenício) ainda era usada na Numídia no século I d.C., mesmo após a conquista romana.

Religião

Os fenícios trouxeram os seus deuses:

  • Baal Hammon (equivalente ao cronos/saturno romano) – o deus principal cartaginês, ao qual eram oferecidos sacrifícios (incluindo, segundo fontes romanas exageradas, crianças no tofet de Cartago)
  • Tanit – a deusa-mãe, símbolo da fertilidade, que se tornou a divindade suprema em Cartago

O tophet de Cartago é um dos sítios arqueológicos mais controversos da Antiguidade. Estudos recentes (2020-2024) sugerem que a maioria das crianças enterradas morreram de causas naturais ou foram natimortos, mas o ritual de oferenda continuou.

Arquitetura e Urbanismo

As cidades púnicas da África do Norte apresentam:

  • Portos artificiais circulares (o célebre porto militar de Cartago)
  • Casas de vários andares com pátios internos
  • Necrópoles com câmaras subterrâneas

A influência é visível até na arquitetura romana da África Proconsular (Tunísia romana).

Agricultura e Tecnologia

Os fenícios introduziram ou intensificaram:

  • Cultivo de oliveiras e vinhas em grande escala
  • Prensas de azeite de tipo cartaginês
  • Sistemas de irrigação
  • Cisteras para recolha de água pluvial

Cartago e os Reinos Africanos do Interior

A influência não se ficou pela costa. Cartago manteve relações comerciais e políticas com:

  • O Reino de Kush (atual Sudão) – através do Egito ptolemaico
  • Os Garamantes do Fezão (Líbia) – intermediários do comércio transaariano
  • Os Getulos e Númidas (atual Argélia e Tunísia)

Massinissa, o grande rei númida aliado de Roma contra Cartago, tinha uma corte helenizada mas também púnica: a sua moeda ostentava inscrições em púnico.

Para saber mais sobre o Reino de Kush e a sua relação com o mundo mediterrâneo, consulte Reino de Kush: influência na Antiguidade.

O Declínio e o Legado

Após as Guerras Púnicas (264–146 a.C.), Roma destruiu Cartago, mas não apagou a sua herança. A cidade foi refundada como colónia romana em 29 a.C. e tornou-se a segunda maior cidade da África romana e a quarta do Império.

A cultura púnica sobreviveu na língua (o latim africano estava cheio de palavras púnicas), nos nomes de lugares e nas práticas agrícolas.

Até hoje, em muitas regiões da Tunísia e da Argélia, os camponeses chamam ao azeite “zeit” (do púnico zayt), palavra que passou ao árabe e ao português (“azeite”).

Perguntas Frequentes

1. Os fenícios escravizaram africanos?
Não de forma sistemática. O comércio de escravos existia, mas era sobretudo de prisioneiros de guerra ou adquirido a povos do interior. A escravatura fenício-púnica não tinha o caráter racial do tráfico atlântico posterior.

2. Cartago era uma cidade “africana” ou “fenícia”?
Era ambas. Culturalmente fenícia/púnica, geograficamente africana. Os cartagineses chamavam-se a si próprios “chanani” (cananeus) e à sua cidade “Qart-ḥadašt”.

3. Porque é que os romanos odiaram tanto Cartago?
Além da rivalidade comercial, o medo de uma Cartago renascida e a propaganda do “delenda est Carthago” de Catão, o Velho.

4. Ainda existem descendentes dos fenícios na África do Norte hoje?
Geneticamente, há continuidade. Estudos de DNA antigo mostram mistura entre populações fenícias, berberes e, mais tarde, árabes.

5. Qual foi a maior contribuição fenícia para a África?
O alfabeto, o comércio transmediterrânico e o modelo de cidade-estado portuária que Roma depois copiou.

Quer mergulhar mais fundo na história fascinante de Cartago e dos fenícios na África?
Leia o artigo completo O Poder de Cartago: história e legado e descubra como uma cidade fenícia se tornou uma superpotência mediterrânica.

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A história da África não começa com a chegada dos europeia – começa muito antes, e os fenícios foram parte fundamental desse capítulo.

A influência cultural e comercial dos fenícios na África continua viva até hoje, nos nomes, nas oliveiras, na arquitetura e no próprio ADN das populações do Magrebe. Cartago pode ter sido destruída, mas o seu legado perdura.

África não foi apenas visitada pelos fenícios – foi transformada por eles, e eles, por sua vez, foram transformados pela África.