Os faraós de pele negra que governaram o Nilo durante um século inteiro e mudaram para sempre a história da África antiga.

Imagine uma civilização africana tão poderosa que invadiu, conquistou e governou o Egito dos faraós durante quase 100 anos, adoptando os seus deuses, construindo pirâmides próprias e sendo chamada pelos próprios egípcios de “Os Reis do Sul”. Essa civilização existiu e chamou-se Reino de Kush.

Bem-vindo a uma das páginas mais fascinantes da história africana que, infelizmente, ainda é pouco conhecida fora dos círculos académicos.

As Origens: Do “Ta-Seti” ao Reino de Kerma (3000–1500 a.C.)

Tudo começou muito antes da famosa 25ª Dinastia. Já por volta de 3000 a.C., no que hoje é o norte do Sudão, existia um poderoso estado arqueologicamente conhecido como Ta-Seti (“Terra do Arco”), famoso pelos seus arqueiros temidos em todo o vale do Nilo.

Mais tarde, entre 2500 e 1500 a.C., surge o Reino de Kerma, uma das primeiras grandes civilizações urbanas da África subsariana. Kerma era rica em gado, ouro, marfim e comércio com o Egito. As suas enormes tumbas reais (chamadas deffufas) eram maiores que muitas pirâmides do Antigo Reino egípcio.

Se quiser saber mais sobre estas civilizações que desafiaram o tempo, veja o artigo Descobrindo as Civilizações Ancestrais e O Berço da Humanidade e de Civilizações.

A Época da Dominação Egípcia: Kush como Província do Novo Reino (1500–1070 a.C.)

Com o Novo Reino, o Egito inverteu o jogo. Tutmés I, Tutmés III e Ramsés II invadiram Kush e transformaram-na na província de “Kush” (ou “Núbia” para os gregos posteriores). Os vice-reis egípcios governavam a partir de cidades como Napata e Kawa, mas a cultura kushita sobreviveu e absorveu profundamente a religião, a escrita e a arquitectura egípcias.

Curiosamente, foi exatamente essa “egipcianização” forçada que mais tarde permitiu aos kushitas reivindicarem legitimidade quando voltaram como conquistadores.

O Renascimento: O Reino de Napata (850–590 a.C.)

Após o colapso do Novo Reino egípcio, Kush recuperou a independência. Por volta de 850 a.C., surge um poderoso reino centrado na cidade sagrada de Napata, aos pés da montanha sagrada Jebel Barkal (considerada por eles a morada de Ámon).

Os reis de Napata começaram a intitular-se “Filhos de Ámon”, usavam a coroa dupla, escreviam em hieróglifos e construíram pequenas (mas numerosas) pirâmides em Nuri, El-Kurru e o próprio Jebel Barkal.

A Grandeza Militar: Piye e a Conquista do Egito (747–716 a.C.)

O ponto alto chega com o rei Piye (ou Piankhi). Em 747 a.C., quando o Egito estava fragmentado em vários reinos rivais, Piye lançou uma campanha militar que é narrada numa estela famosa encontrada em Jebel Barkal.

“Sua Majestade avançou para o norte… os chefes vieram curvando-se, com as testas no chão, cheirando a terra diante do poder do rei…”

Piye conquistou Mênfis, Tebas e o Delta. Em vez de destruir, obrigou os príncipes locais a jurarem lealdade e reconheceu-se como o verdadeiro restaurador da ordem ma’at. Nascia assim a 25ª Dinastia – a dinastia dos “faraós negros”.

Se quiser ler mais sobre esta incrível campanha, veja o artigo completo em O Reino de Kush: O Egipto Antigo e Imperio Núbio – As Conquistas.

O Apogeu: Shabaka, Shebitku, Taharqa e Tanutamani (716–656 a.C.)

  • Shabaka (716–702 a.C.) transferiu a capital para Mênfis e mandou copiar o famoso “Texto de Shabaka”, uma das mais antigas teologias egípcias.
  • Taharqa (690–664 a.C.) foi talvez o mais famoso. Construiu ou restaurou templos em todo o Egito e na Núbia, enfrentou os assírios de Assarhaddon e depois de Assurbanipal. A Bíblia menciona-o (2 Reis 19:9; Isaías 37:9) como o rei que veio salvar Jerusalém.

Apesar da bravura, os assírios, com armas de ferro, acabaram por expulsar os kushitas do Egito em 656 a.C.

A Idade do Ouro em Meroé (590 a.C. – 350 d.C.)

Expulsos do Egito, os reis kushitas não desmoronaram. Pelo contrário: mudaram a capital para Meroé, mais ao sul, longe do alcance assírio, e criaram uma das civilizações mais originais da Antiguidade.

Características únicas do período meroítico:

  • Desenvolvimento da escrita própria (alfabeto meroítico ainda parcialmente indecifrado)
  • Rainhas governantes (as famosas Kandaces ou Candaces)
  • Produção em massa de ferro (Meroé era uma das maiores siderurgias da época)
  • Pirâmides mais pequenas e mais íngremes (mais de 200 só em Meroé)
  • Forte culto à deusa Ísis e ao deus-leão Apedemak

Veja mais em A Arte e Arquitectura da Antiga Núbia e Os Mistérios das Tumbas do Reino de Kush.

As Rainhas Kandaces: Poder Feminino na Antiguidade Africana

Amanirenas (40–10 a.C.) é talvez a mais famosa. Quando o Império Romano, sob Augusto, tentou cobrar impostos à Núbia, ela liderou um exército que atacou Assuão, destruiu estátuas do imperador e trouxe de volta a cabeça de bronze de Augusto (hoje no British Museum).

Roma acabou por assinar um tratado favorável a Meroé – um dos raros casos em que Roma recuou perante um reino africano.

Conheça mais sobre estas mulheres incríveis em As Mulheres Poderosas da Antiguidade e O Papel da Mulher na Sociedade Antiga.

Declínio e Queda (350 d.C.)

Por volta do século IV d.C., o reino de Meroé entrou em declínio devido a factores combinados:

  • Desertificação crescente
  • Concorrência comercial do Reino de Axum (actual Etiópia)
  • Invasão do rei Ezana de Axum (que se convertera ao cristianismo) por volta de 350 d.C.

Ainda assim, a cultura kushita sobreviveu nos reinos medievais cristãos da Núbia (Nobatia, Makuria e Alodia) até ao século XIV.

Legado do Reino de Kush

  1. Demonstrou que a África subsariana tinha estados complexos milhares de anos antes do contacto europeu.
  2. Provou que o poder no vale do Nilo não fluía apenas do norte para o sul – podia fluir na direcção oposta.
  3. Influenciou profundamente a arquitectura, religião e arte egípcias tardias.
  4. Inspirou movimentos pan-africanos modernos e o orgulho negro em todo o mundo.

Perguntas Frequentes sobre o Reino de Kush

P: Os faraós da 25ª Dinastia eram “negros” ou “africanos”?
R: Sim. Eram originários do actual Sudão, tinham pele escura e traços negro-africanos, como mostram as estátuas e relevos. Eram tão “egípcios” quanto os faraós do norte, porque adoptaram completamente a cultura faraónica.

P: Porque é que quase ninguém conhece esta história?
R: Durante muito tempo, a egiptologia eurocêntrica apresentou o Egito como “não africano”. A 25ª Dinastia incomodava essa narrativa, daí o seu quase apagamento nos manuais escolares.

P: As pirâmides de Kush são cópias das egípcias?
R: São inspiradas, mas não cópias. São mais pequenas, mais numerosas, mais íngremes e serviam apenas como capela superior (o corpo era enterrado em câmara subterrânea).

P: O que aconteceu aos descendentes dos kushitas?
R: Muitos dos actuais povos nubianos do Sudão e sul do Egito (como os dinkas, nuer, shilluk, mas também os próprios núbios do norte do Sudão) carregam herança genética e cultural kushita.

Quer continuar a viagem pela história africana?

E se quiser aprofundar ainda mais:

A história da África não começou com a chegada dos europeus.
Começou há milhões de anos – e Kush é apenas um dos seus capítulos mais gloriosos.

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Porque a África não só teve história…
Ela conquistou a história.